Demolidores Cruzados - 1


Áquila, 4 de Abril de 1380.

Quando todas as lágrimas se exaurirem. Quando todas as mágoas se extirparem e todo o sofrimento estiverem selados junto com as sombras do passado é que os homens estarão prontos para olhar para o futuro como um lugar bom para se estar.

Mesmo que toda dor seja subjetiva. Mesmo que todo sofrimento seja único e incomparável. Em todos os cantos do mundo. Em todas as casas. Em todos os corações sempre haverá a dor e a dor é única. É ela que une tanto aqueles que sofrem quanto os que infligem, pois não seria a tirania a maior demonstração de fraqueza e sofrimento interno?

Heian Ruína de Dragão não tinha a menor dúvida disso tudo. Ao longo de seus cento e vinte anos de existência entre gigantescos carvalhos e gigantescas torres de pedra o sofrimento ao qual todo mortal estava condenado era igual, não havia escapatória.

Do alto de uma das mais altas torres de uma gigantesca metrópole o Ranger Meio-Elfo solitário contemplava a noite chuvosa que trancafiava os habitantes em suas casas ao lado de lareiras que os protegiam do terrível inverno que assolava não somente seus corpos. Mas, principalmente seus corações.

Janelas iluminadas. Chaminés fumegantes. Vielas cheias de lama. Uma noite vazia. Heian apertou bem sua capa de couro junto ao corpo como que se ela o protegesse do imenso vazio que preenchia seu interior. A chuva lavava sua alma e sua solidão nada mais era do que sua melhor companhia para mais uma noite vazia de uma metrópole caótica.

Áquila, capital da solidão e do reino de Arthania. Se você precisasse de um lugar para não se fazer amigos e viver a cada dia trancafiado em seu quarto escondendo-se da violência das ruas você está no lugar certo! Heian dizia-se isso todas as noites.

E aquela era mais uma noite de violência convidativa.

Porque protegê-los? Porque ajudá-los a dormirem tranqüilos sendo que eles mesmos produzem toda violência que os assola? Porque ajudar uma sociedade corrompida pela inveja e a ganância? E quando eu me for? Outros virão? Tenho certeza absoluta que eu não posso salvar a todos. Não posso estar em todos os lugares onde precisão de mim. E no final das contas eles ainda odeiam pessoas como eu. Que os protege. Que os livra de todo o sofrimento ao qual estão condenados...

Heian observava tranquilamente à noite chuvosa. Os pingos explodiam em seu rosto e ele se sentia vivo e principalmente condenado. O peso de sua responsabilidade estapafúrdia envelhecia-lhe a alma e a corrompia a favor de uma justiça que ele sabia que não exista.

Homens. Elfos. Anões. Halfttis. Meio-Orcs. Meio-Elfos. Todos que compunham todos os tipos de sociedade que compunham as cidades do continente de Asteron tinham seus próprios heróis. Pessoas que como Heian vigiam suas vidas como nas sombras do anonimato. Pessoas que dedicavam suas vidas ao que precisava ser feito e não que gostariam de estar fazendo sem o menor reconhecimento.

Heian olhava para as ruas onde pessoas eram mortas todos os dias. Onde seus bolsos e corações nunca permaneciam muito tempo imaculado. Heian olhava para seu campo de batalha, para sua sina noturna. Mas ele via apenas uma estrada de solidão e desespero na qual toda a sociedade equilibrava-se.

Seus longos cabelos ruivos estavam encharcados pela chuva assim como seu coração pesava mais do que o próprio céu carregado. Os deuses choram perante nossas cabeças, pensou ao olhar para a negritude azulada ante a explosão dos trovões.

― Ta afim de companhia gatinho? ― disse uma voz rouca e granulada típica de uma fumante sob as costas de Heian.

O Meio-Elfo sorriu em silêncio.

― Não estou muito afim de uma noitada hoje gatinha. ― sugeriu Heian ao virar-se para olhar o velho anão que com muita teimosia impelia seu corpo largo sob o parapeito do terraço da torre.

― Achei que um velho soldado anão seria diversão garantida... ― disse com um tom ofegante assim que conseguiu pôr-se de pé sob o terraço ― É uma subida daquelas em Elfo! Se você ainda costuma vir aqui todos os dias teve estar pensando em voltar à ativa não é?

Heian com os braços cruzados sob o peito meneou a cabeça.

― É bom te ver também! ― declarou o anão abraçando fortemente seu velho amigo.

― Pra mim não faz diferença nenhuma! ― Heian disse sorrindo.

Zinkt olhou para cima na direção dos olhos do amigo e coçou sua barba.

― Talvez eu te lembre de quando você era um Herói de respeito. Acho que é por isso que tu não te sintas bem em minha companhia. ― disse o anão cobrindo-se com a capa azulada e ao lado do Meio-Elfo também observando a noite chuvosa.

Os dois permaneceram em silêncio por um longo período. Nem se olhavam por sinal. Era como que se cada um tivesse muito no que pensar em sua própria solidão agora que estavam juntos novamente depois de tantos anos sem se verem. Então depois de respirar profundamente como que se estivesse tomando fôlego para saltar o imenso abismo que havia entre os dois Heian disse:

― Ouvi falar de exércitos de dragões mortos vivos em Asteron. Hordas de orcs pelas trilhas dos rios. Os militares arthanianos estão alistando tropas para se protegerem. Este mundo já estava doente o bastante para começar a apodrecer novamente. ― praguejou Heian com um tom de melancolia em sua voz como que se toda a responsabilidade lhe coubesse.

O anão olhou de soslaio para o Meio-Elfo, mas preferiu não comentar o assunto. Ele sabia onde o Heian queria chegar. Mas ele tinha um assunto mais importante do que o problema social dos povos de Asteron.

― Hoje eu encontrei um Meio-Elfo sob um dos portões de Áquila enquanto eu checava a troca da guarda. Ele parecia estar à beira da morte. Havia uma horda de orcs mutilados ao longo da estrada pela beira da mata. ― disse Zinkt esperando a reação do amigo que arregalou os imensos olhos amêndoas com aquele velho brilho de ansiedade que lhe era peculiar― E você falou com ele. Sabe de onde ele vem? ― perguntou com uma expressão fantasmagórica assim que um relâmpago iluminou usa face.

Zinkt sabia que o tinha pra falar somente lhe traria complicações. Era um assunto complicado e ele não tinha todas as respostas para as perguntas que viria a seguir então depois de respirar três vezes profundamente disse:

― Prometa que você vai se contentar com tudo o que eu lhe disser. Que não vai forçar a barra duvidando da minha palavra. Promete? ― perguntou levantando as sobrancelhas lembrando-se que Heian nunca se contentava com pouco. Na verdade com nada que não fosse toda a verdade.

― Prometo. Agora diga logo o que foi que você descobriu! ― disse com uma expressão séria cruzando os braços sob o peito. Zinkt odiava quando ele fazia isso, pois o fazia sentir-se em um interrogatório.

―Ok. Eu e Sub’Azzerroze socorremos ele. ― disse o anão constrangido coçando as longas barbas castanhas. Havia um imbróglio não resolvido entre o Meio-Elfo e o Capitão das tropas arthanianas que parecia estar bem vívido na mente de Heian.

― Sub’Azzerroze? Ele voltou? ― Heian disse assustado tentando disfarçar o tom de irritação em sua voz e o olhar penetrante do anão em busca de seus sentimentos a flor da pele.

―É parece que sim. Ele tornou-se capitão de uma das tropas da cidadela. Mas, o que mais nos intrigou foi o que o Meio-Elfo nos disse antes de desaparecer. Você não vai acreditar! ― declarou Zinkt com veemência criando o suspense ideal para revelar o fato.

Heian chacoalhou o braço indicando que queria a resposta.

― E aí? ― bufou.

― Ele disse que viera de Inaradrinn e que seu nome era... ― então Zinkt não conseguiu terminar a frase. Palavras faltaram em sua boca. Heian estava tão vermelho quanto seu cabelo.

Zinkt percebeu que Heian sentiu vontade de jogar-lhe como se fosse um barril de cerveja do alto da torre de tão fulminante que foi o seu olhar.

―Zinkt de Howerheck... Diga de uma vez por todas tudo o que está engasgado nessa sua garganta de dragão ou então eu abro ela na marra! ― ameaçou Heian entre dentes segurando o anão pelas fivelas da armadura e levantando-o na direção de seu olhar.

― Me larga Elfo desgraçado!― praguejou Zinkt esperneando no ar ― Ele disse que seu nome era Helm Castelo Cinzento! Como seu verdadeiro nome não? O seu não é Heian Castelo Cinzento? Me larga seu Elfo miserável!

Heian soltou o anão como se fosse um saco de batatas segurando a cabeça entre as duas mãos. Em um segundo seu mundo desabou.

― Você ta de brincadeira comigo não é seu filho de barril de cerveja? ― acusou Heian dando de dedo na cara do anão com a face crispada de fúria enquanto andava de um lado para o outro.

― Eu falei pra você não duvidar de mim! E não me insulte em seu Elfo desgraçado! Não me insulte! ― vociferou Zinkt levantando-se do chão e recompondo sua postura assim como seu ego.

Heian olhava perplexo para o velho anão.

― Isso é impossível. Só pode ser uma armação daquele miserável do Sub’Azzeroze. Ele sabe que eu estou na cidade não sabe? ― indagou Heian vermelho de raiva tentando encontrar uma explicação.

Zinkt caminhou na direção do Meio-Elfo e colocando a mão sobre o ombro de seu velho amigo assegurou:

― Nós vamos descobrir quem é ele Heian. Eu garanto. Vamos até a taverna do velho Ladnar, tomar uma cerveja e esclarecer a idéias com aquele halftti de uma figa. Hum? ― ofertou o anão tentando sorrir para diminuir o abalo emocional do velho amigo.

Heian tirou a mão de Zinkt de seu ombro.

― Acho que não vai dar. Onde está este Meio-Elfo? Onde ele está?

Zinkt meneou a cabeça negativamente.

―Sumiu!

Heian franziu o cenho.

― Como assim?

― Não sei... Eu o Sub’Azzerroze estávamos juntos com ele em dos quartos das torres da Fortaleza Real e aí do nada apareceu um velho mago embrulhado num manto dourado e não me lembro de mais nada... ― disse Zinkt confuso esfregando a face com as mãos.

Heian fixou seus olhos no horizonte e Zinkt pode ver o brilho da força do espírito do amigo reluzindo em seus olhos. Ele sabia que Heian não descansaria até descobrir a verdade sobre essa história.

― Como você sabia que eu estava na cidade? ― Heian perguntou com um tom irritado na voz que mais beirava a desconfiança.

― Eu venho aqui todas as noites desde que você partiu... ― disse o anão com o orgulho ferido ― Eu nunca faria nada para te prejudicar Elfo! ― garantiu com os olhos umedecidos.

Heian sentiu uma pontada no peito. Sua intenção não era magoar seu velho amigo.

― Me desculpe Zinkt. Mas, tudo isso que você me contou é muito assustador. Se não fosse você que me dissesse tudo isso eu juraria que era uma mentira. Mas... Como isso é possível? ― perguntou mais para si mesmo do que para o anão e seus olhos voltaram-se novamente para o horizonte.

Zinkt segurou nos ombros do amigo como um pai que abraça um filho.

― Nós vamos descobrir Heian. Eu lhe garanto! ― declarou com uma piscadela.

― Como? ― perguntou Heian totalmente incapacitado.

E então um brilho de determinação e teimosia insinuou-se nos olhos do anão.

― Eu não sei, mas Ladnar Galhofeiro bem que sabe!



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