Guerra Psíquica - 9


Áquila, 3 de Abril de 2010. 

A noite cosmopolita na metrópole Áquila nunca erra o teor de espanto e terror no coração podre e doentio de sua amada população. Mais uma noite de violência convidativa e diversão garantida por prazeres baratos: sexo, drogas e sangue, muito sangue, do jeito que ela gosta.
Não existem muitas mulheres como Chester Margarida em toda malha de asfalto e concreto que trancafia os cidadãos atrás das grades de suas janelas em prédios decrépitos do velho centro periférico, um lugar esquecido até pelas velhas e novas entidades. Jovem, vinte poucos anos, lábios carnudos revestido do mais provocante batom escarlate, pele jovial como pêssego em calda, longos cabelos brilhantes como o mais puro mel e olhos sedutores como dois poços de lava dourada, capazes de enredar em suas profundezas o mais nobre coração desavisado.
Sua beleza, seu cartão de visita. Seus vestidos colados ao corpo ou suas roupas de couro vermelho disfarçam o poder destruidor que se esconde em mãos divinamente delineadas, parceiras inseparáveis de uma faca militar ou um trezentos e oitenta, cano curto e cromado, com muitas horas de tiro. Chester Margarida trabalhava sozinha. Aprendera com a vida que lhe coube quando abandonada por sabe-se lá quem, em um orfanato público ainda bebê, mas isso era culpa do sistema, e ele cria seus próprios algozes. Ela era mais uma sobrevivente. Uma célula cancerígena num organismo infeccionado pela corrupção, uma mosca rainha sobre a merda fresca.
Quando adolescente, foi vítima de uma tentativa de estupro em seu quarto no orfanato, mas o medíocre zelador pançudo, assim que abriu o zíper da calça para pegá-la pelas costas enquanto a pobre indefesa dormia, sentiu uma faca de cortar pão abrir-lhe a garganta, o sangue quente e escarlate esguichou por entre os dedos das mãos. Chester escapou dos braços suados e peludos do gordo imundo que caiu sobre a cama guinchando feito um porco no frigorífico. 
Fora a primeira vez que matara um homem e sentirá uma paz revigorante que nenhuma aula de religião ou culinária havia lhe trazido. Suas amigas estavam vingadas, mas era hora de expandir isso a um nível superior, então ela fugiu. As mulheres da  sociedade precisavam de seus serviços.
Tornar-se uma garota de programa ou prostituta de luxo não estava em seus planos, mas era a melhor forma de atrair aqueles que sugam as tetas do poder público, adoram a prostituição, e disseminam a corrupção e criam as instituições totais, como orfanatos e manicômios. Seu relógio marcava 21h32min, seu cliente era um homem casado, pai de família, filhos, esposa, casa na praia e uma conta farta em um dos bancos da Corporação Ovolun: empresa que dominava a fabricação de medicamentos e armamentos em Áquila. Mas o prazer sexual que ele buscava sua mulher não podia lhe dar, a coitada era depressiva, rejeitava o marido, mas também o marido a traia na cara dura e sempre lhe lembrava que antes eles se casarem ela não passava de uma linda boa moça. Enfiou a vida no rabo ao se casar com esse empresário e achava que era feliz.
Ainda no banheiro de seu apartamento, de um conjunto habitacional decrépito, ela retirou o jaleco branco da farmácia que trabalhava em horário comercial e ligou o chuveiro, era o fim do expediente de sua vida normal. Colocou uma dose dupla de um uísque com gelo e ligou o toca-discos da sala em alto e bom som. Tomou banho com a porta aberta para curtir as guitarras distorcidas de sua banda favorita: Bad Honey's. Achava que bandas encabeçadas por mulheres eram de longe superiores.
Seu relógio marcava 22h10min, estava pronta. Linda. Bela e mortal. Retocou o batom já dentro do carro olhando no espelho do quebra-sol do motorista, e viu pelo reflexo um assalto em andamento. Não se importou, ela não fazia justiça, apenas tinha sua causa pessoal, poderia sim evitar esse tipo de crime, mas isso era para outros justiceiros que como ela, combatiam algo que a polícia não era capaz, ela vingava apenas mulheres.
Mulheres violentadas, mas não como no fatídico dia em que ela invocou a morte no orfanato, mas sim, mulheres que ficavam em suas casas, cozinhando, passando e trepando com seus maridos imundos, fedendo a nicotina e álcool destilados em perfume de bordéis e bares com prostitutas de esquina. Era essa violência da qual ela deveria era fruto, ou acreditava ser, com certeza de uma mãe adolescente que não teve coragem de introduzir os quatro remedinhos na vagina e os outros quatro que se ingerem para mandá-la para o inferno, ela combatia essa violência doméstica. Mesmo que tais esposas já estivessem acostumadas com o luto de maridos vivos.
O ronco do motor de seu sedã vermelho arrancou no asfalto fritando os pneus assim que o estojo de maquiagem se fechou. Calça de couro negro, botas negras, jaqueta vermelha, decote provocador exaltando os seios fartos, estava pronta, seu cliente não parava de ligar ansioso pelo deleite. Quinze minutos depois e vinte e cinco ligações perdidas em seu Smartphone ela estaciona no Hotel Orazza, como combinado. Os dois estavam ansiosos, um pela necessidade biológica de reproduzir o ato animal da reprodução e o outro, para reproduzir a seleção natural dos mais fortes. 
Como uma profissional que era, ela seguiu rumo à suíte máster alugada por seu cliente, passos calmos pelo corredor de tapete vermelho do longo corredor repleto de luminárias caríssimas que somente ele mesmo poderia ter escolhido: era mais um de sua rede de hotéis clandestinos colocados em nome de laranjas. Câmeras espalhadas por todos os lados davam a seu cliente a falsa sensação de segurança. A porta destrancada abre-se e revela o interior luxuoso do aposento, a face velha e sedenta de seu cliente lhe enoja, ela imagina se seu pai teria sido assim. O roupão púrpuro embrulhava o corpo desnudo de sua vítima que se masturbava, a barba bem cultivada emoldurava o sorriso amarelado pela nicotina de centenas de charutos. Champanhe importado no gelo. Rosas vermelhas. Pacote romântico, digno de um funeral.
Ele se levanta assim que a porta se tranca e como um cachorro louco que já tomou seu comprimidinho azul meia hora antes ele desamarra seu roupão para mostrar seu diminuto pênis enrugado ereto, Chester Margarida sorri e saca sua trezentos e oitenta cromada e descarrega o tambor de seis balas uma atrás da outra logo na cara do filho da puta conhecido como o empresário Etellot de Orazza. O rato ladrão cai de costas quebrando o abajur com o rosto desfigurado fedendo carne queimada. Crateras abertas pelas balas na face e sob o alto do crânio liberam fumaça libertando Áquila de mais um semeador de sofrimento.
 Antes de partir, como de costume, ela decepa o membro sexual e introduz sob a boca da vítima. As autoridades saberiam o motivo do crime: perversão sexual, sua marca registrada, uma assassina procurada inclusive por outros criminosos. Mas, suas múltiplas identidades lhe conferiam segurança total. Instalou seu rapel na janela e saltou os dois andares até o estacionamento.
Sem mais, partiu.

*****

O caminho até em casa fora tranquilo, já era tarde, precisava descansar. Tomou outro trago de seu uísque e caminhou até o banheiro. Olhando-se no espelho retirou a peruca e a maquiagem. O rosto e o couro cabeludo, desfigurados por uma queimadura grave, revelou-se por detrás da beleza artificial que encantava. Marcas da violência praticada em uma instituição de menores quando foi identificada como assassina do zelador de seu orfanato. Ela nunca mais se esqueceu dos horrores que passara naquela instituição de recuperação de menores.
Nunca se esquecera do monstro estuprador que fizera isso com ela novamente...
Nunca se esquecera de Etellot de Orazza.
Mas essa noite ela dormiria em paz. A esposa dele também.



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