Áquila. Bairro do Centro Novo - 1

Áquila - 1370

O sol deitou-se com os arranha-céus mais profundos do horizonte deslizando pelo céu que se despia num cinza esverdeado podre de poluição, ante a gigantesca lua escarlate que se anunciava completa tingindo o magnífico crepúsculo com sua luz inebriante. Em nenhum lugar de toda Hakis havia um céu tão podre e poluído como o de Áquila, não ao menos na opinião do saudoso Meio-Elfo.

Heian Ruína de Dragão jogou-se de costas sob o terraço de um dos prédios banhado pelo sereno da calorosa noite e contemplou-na esplendorosa, ela calorosamente recepcionava seu tão desejado retorno a sua terra natal. O Meio-Elfo sentia-se aliviado por estar em casa e jurou para si mesmo que nunca mais abandonaria a terra que há trinta anos ele aprendera a amar e chamar de lar, o mundo lá fora estava diferente. Nada substituía o cheiro do asfalto molhado, temperado com o aroma das chaminés fumegantes dos restaurantes exóticos que preparavam o jantar de mais uma noite caótica em Áquila.

Heian aprendera a amar a metrópole colossal não por sua hospitalidade e calor humano, mas sim porque ali ele descobrira um lugar onde as pessoas realmente viviam suas vidas com amor e a alegria de estarem vivos, e medo também. Cada refeição era única e motivo para celebrar mais um dia de vida junto dos amigos e familiares. Era como um ritual diário de celebração a vida, um agradecimento aos deuses por este magnífico presente dado a todos sem nada lhes custar.

Quando Heian abandonou Áquila, sua terra natal, ele deixou mais do que amigos e conhecidos, ele abandonou a oportunidade de fazer parte de algo do qual ele realmente pertencia em busca de glória e poder pelas terras nefastas de Hakis. Mas agora ele estava de volta de uma vez por todas decidido a nunca mais abandonar seu verdadeiro lar por qualquer que fosse o motivo, pois agora seu coração já conhecia as desilusões para além dos muros de proteção de Áquila.

Do alto do arranha-céu, Heian observava com certa nostalgia a metrópole colossal que se alongava sob as margens da represa com suas janelas arredondadas iluminadas pelas telas de TV que pareciam nunca se desligarem. Mas era mais especificamente para uma casa na entrada do portal de seu velho bairro que seu coração se voltava. Tratava-se da morada daquele que Heian aprendera amar e respeitar como seu melhor amigo desde sua chegada a cidade. Tratava-se de Zinkt de Howerheck, o Anão mais rabugento e pessimista que o Meio-Elfo já conhecera.

Mas havia algo estranho na casa de seu amigo, pois as luzes estavam apagadas e a não ser que uma comitiva de anões do clã dos Howerheck aparecesse e o obrigasse com juramento de morte a abandonar seu lar em busca de ouro nos subterrâneos infindáveis de Áquila, por nada no mundo ele o faria de bom grado. Heian temia que o pior houvesse acontecido, pois trinta anos longe de casa era tempo suficiente para que qualquer um partisse em busca de novas aventuras.

Heian levantou-se de seu repouso sob o parapeito do aranha-céu e desceu escalando com toda habilidade possível em direção as ruas da cidade desejando a cada metro evitar o momento em que todas suas suposições se concretizariam. Durante o percurso de não mais que quinhentos metros do alto do arranha-céu até a entrada da cidade Heian angustiou-se a cada centímetro percorrido até a porta da casa do anão. Ao chegar a frente da casa de seu melhor amigo, Heian sentiu um nó em sua garganta ao ouvir os velhos cânticos de guerra e gargalhadas abafadas que provinha dos vizinhos que alheios a sua angústia comemoravam felizes suas vidas.

Heian bateu três vezes sob a velha porta de madeira sem que nos minutos seguintes qualquer sinal de vida revidasse seu incomodo a profunda solidão daquela casa. Com os olhos avermelhados o Meio-Elfo mordeu os lábios e amaldiçoou a si mesmo esmurrando a porta com toda força que possuía. Impotente Heian recostou-se sob a fria parede de pedras sobrepostas e deslizou seu corpo em direção ao chão sem nenhuma resistência.

Heian sentiu-se perdido. Ele desejou ardentemente acreditar que o velho amigo houvesse partido em uma jornada em busca de um tesouro antigo no covil de um velho mestre de guilda do subterrâneo ou sob alguma masmorra solitária nas profundezas dos antigos templos, do que enfrentar a realidade que seu amigo fora vencido pela velhice, Zinkt estava com uma doença rara quando ele partiu a 30 anos atrás.

―É melhor você ir retirando essa sua carcaça fedorenta da beira da minha porta antes que eu chute sua bunda seu Duende miserável. ― ralhou uma voz vinda de um ser de baixa estatura que virava a esquina com inúmeras bugigangas penduradas pelas costas.

Heian levantou-se num pulo gracioso e prontamente um sorriso rasgou sua face de ponta a ponta por debaixo da longa barba castanha e antes mesmo que o anão pudesse fazer algo o Meio-Elfo correu em sua direção com os braços abertos sedento por um abraço.

―Pare de ser sentimental seu Duende de uma figa e me bota de volta no chão!―disparou o Anão que se debatia nos braços do Meio-Elfo disfarçando a felicidade em rever seu grande amigo espadachim.

O Anão recuperando a dignidade se recompôs do abraço de Heian que o encarava com aquele velho brilho no olhar que deixava as mulheres das tavernas loucas por ele.

―Aposto que você tava morrendo de saudade Zinkt de Howerheck. ― declarou Heian numa gargalhada colocando em sua cabeça o elmo de metal todo amassado que pendia torto na cabeça do anão e Zinkt pode ver a face jovial que o amigo estampava revelando a natureza impetuosa dos homens que corria em seu sangue mestiço.

―Andei muito ocupado durante todos esses anos pra sentir tua falta Duende, mas a balofa da taverna ainda chora quando ouve falar no nome do caloteiro que dormiu com ela pela primeira vez. ―disparou o Anão tomando de volta seu elmo e caindo na risada ao ver a expressão indignada que Heian fez ao se lembrar do fato.

―Já entendi! Não precisava pegar pesado assim. E aí? Voltando de viagem? ― indagou Heian desconfiado desviando o rumo da conversa enquanto seguia o Anão na direção de sua casa.

―Negócios, pra ser mais específico. Eu e Ladnar estamos nos preparando para uma jornada. O halffit tem um mapa. ― respondeu Zinkt abrindo a porta de sua casa com um brilho sinistro no olhar ― E no mapa tem algo que me interessa, será a maior jornada!

Heian adentrou a casa de Zinkt e prontamente foi tomado por um acesso de espirros tamanho era a poeira acumulada, o Anão com certeza também estava enrolado por aí, a casa estava abandonada há tempos.

―Eu não acredito que mesmo depois desses trinta anos você ainda continua dando ouvidos pros planos mirabolantes daquele pequenino sobre de encontrar tesouros perdidos nos níveis subterrâneos de Áquila. Da para acender uma vela, por favor? ― instou Heian tropeçando no próprio amigo feito um saco de batatas.

―Já to fazendo isso! E você, porque voltou pra perturbar a vida de quem está quieto? Não encontrou a glória necessária pra se tornar um herói pelas terras inóspitas repletas de dragões perversos ou sabe-se lá o que nos outros planos de existência? ― perguntou com tom de escárnio na voz o Anão imitando um dragão pronto para atacar o amigo.

―Encontrei tudo isso e mais um pouco se quer saber. Agora está na hora de eu me aposentar e ter uma família, é por isso que voltei. ― declarou Heian coçando a barba botando fogo na madeira sob a lareira.

Zinkt semicerrou os olhos e observou seriamente Heian. o Meio-elfo sabia muito bem o que ele estava tentando fazer, não havia acreditado em nenhuma de suas palavras até agora.

―Família? Você?― esganiçou o anão― Se eu bem te conheço você está se enganando novamente. As coisas mudaram por aqui Heian, todos estão tentando partir. Rumores de invasão, os muros que cercam essa cidade e ninguém escapa. Os subterrâneos que levam a todos sabe-se lá para onde. E você tentando construir algo aqui? A melhor coisa é fugir do que está por vir.

―Como assim. Qual é o problema?― perguntou Heian perplexo seguindo o Anão pelos corredores de pedra enquanto ele verificava se cada coisa estava em seu lugar.

―Rumores de uma guerra. Exércitos de orcs espalhados por todos os lados vindos do sul. Ninguém sabe o que eles querem e não demorarão muito até descobrirem essa cidade maluca e acabarem com tudo. ― explicou Zinkt acendendo as velas da cozinha e colocando um bule com água no fogão de lenha.

Heian olhou a noite iluminada da cidade através da janela e deixou seu pensamento deslizar junto com a brisa que balançava latas de cerveja pelas ruas. Zinkt notou a preocupação na face de seu amigo que parecia demasiadamente perturbado com os rumores.

―Que bicho te mordeu Duende?― perguntou Zinkt encabulado.

―Eu vi os exércitos. Eles destruíram muitas vilas. Cidades foram destruídas e saqueadas e as florestas incendiadas. O que resta de nosso reino está apenas aqui em Áquila. As outras cidades lá fora não pertencem a esse mundo. são outros povos, de outros planos. A vegetação é diferente, o clima, os animais. Até parece que universos foram costurados em um mesmo território. ―engasgou Heian encarando o Anão que odiava a magia e a tecnologia.

Zinkt ficou perplexo com a história do amigo e sentiu grande pena ao velo nesse estado, o Meio-Elfo não se abalava a toa. Ninguém saia de Áquila há décadas, mas ele escapou e encontrou a verdade. O Comando Ovolun protegia todas saídas físicas e mágicas. O Meio-Elfo deveria ter descoberto uma maneira de sair e voltar sem ser percebido pelo sistema.

―Você não tem culpa de nada do que acontece lá fora! ― declarou o anão irritado tentando ser consolador e repousando a mão sobre o ombro do amigo disse mais ― Não sei por quê diabos você teve que sair daqui e voltar. Já que encontrou a verdade que tanto buscava me ajude a sair dessa maldita cidade!

Heian sorriu e encolheu os ombros. Era isso que ele precisava ouvir.

― Nosso mundo não existe mais. ― declarou Heian evidentemente confuso com seus conflitos internos ― O único pedaço de Hakis é o território em torno de Áquila. Além dele são pedaços de outros mundos que se juntaram. Eu não tenho ideia do que aconteceu com nosso universo ou que entidade realizou isso. Eu não tenho ideia de como nosso mundo se chama agora.

O anão sorriu como nos velhos tempos de outrora quando eram jovens e o mundo estava preste a ser conquistado por heróis que eles nunca se tornaram. Zinkt sinalizou para que Heian o acompanhasse e os dois foram para o porão da casa. A escadaria que levava até lá em baixo estava repleta de teias aranha e muita poeira encalacrada, o porão era onde o anão guardava tudo aquilo que provava que ele já tinha sido um dia: suas lembranças e identidade. Assim que o anão acendeu sua tocha, o coração do Meio-Elfo quase saiu pela boca. Sob um altar de pedra cheio de runas mágicas repousava antigos relíquias lendárias. Eram três orbes mágicos de cintilações de cores diferentes, dentro deles parecia pulsar um universo vivo. Heian encarou apavorado o Anão que insinuava um sorriso malicioso sob a barba de longas tranças negras.

― É por conta delas que nosso mundo está assim Duende. Estas são as Ovoluns, a história delas é bem antiga,  E pode chamar nosso mundo agora de Multiverso Ovolun e considere-se responsável por ele se manter assim durante um bom tempo.

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